segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Aos Pintores com a Boca e os Pés








Certa vez, na curso de Publicidade, tivemos que criar uma campanha para inclusão de portadores de deficiência no mercado de trabalho. Lembro que destacamos a frase "Portador de Deficiência" e riscamos o "D" com um "x". Ficou "portador de eficiência". Defendemos a idéia de que um portador de deficiência vive uma situação que praticamente o obriga a desenvolver qualidades como perseverança, persistência, resiliência, paciência, e muitas outras que podem torná-lo um empregado eficiente, às vezes até mais dedicado que àquele que não tem deficiência física, afinal, a superação de limites é algo que acaba fazendo parte de seu cotidiano. É claro que estamos falando daqueles dispostos (aliás, decididos) a serem úteis.


No livro "Minhas razões, tuas razões - A origem do desamor" o psiquiatra Paulo Gaudêncio conta uma história maravilhosa sobre um piloto chamado Douglas Badder, que era piloto da RAF e perdeu as duas pernas num acidente de avião. Ele se viu aposentado jovem, com um grande salário e nenhum futuro. Então mandou desenhar duas pernas de alumínio, articuladas através de correias, reaprendeu a andar e voltou a pilotar. Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, ele quis voltar a ser piloto da RAF. Participou de bombardeios, e num deles seu avião foi abatido, ele ficou com as pernas presas nas ferragens, largou as pernas e pulou de pára quedas. Foi considerado o prisioneiro de guerra que mais deu trabalho para a Alemanha, em função das inúmeras tentativas de fuga que realizou. E deixou a seguinte frase, que eu nunca vou esquecer: "Quando tiver uma desculpa verdadeira, não a use. A pior desculpa é a desculpa verdadeira". Como disse o autor: "Ele tinha a pior desculpa do mundo: era aleijado. Se tivesse usado essa desculpa verdadeira, ia passar a vida dentro de um hospital. Como não usou a desculpa verdadeira, fez de sua vida uma aventura maravilhosa". O autor cita esse exemplo para dizer que muitas vezes, num relacionamento amoroso - que é o tema do livro - nos cercamos de desculpas verdadeiras: deixamos de fazer tal coisa porque "nosso parceiro não deixa". É verdade que ele não deixa, mas é também verdade que uma parte de nós também não quer fazer tal coisa por algum motivo (medo, por exemplo). Mas não enxergamos que uma parte de nós é cumplice do outro. É mais fácil culpar o outro, usar uma desculpa (verdadeira ou não) e deixar de fazer.

Fico a pensar se essa capacidade de superação das pessoas é algo inato, desenvolvido com o tempo, ou despertado em razão de uma grande dificuldade e /ou perda.
O porteiro do meu condomínio é uma pessoa querida e prestativa, que acabou se tornando um amigo da família . Há dois ou três anos ele teve um problema de circulação e precisou amputar a perna, na altura da coxa. Passado o tempo de adaptação, ele colocou uma prótese, comprou um carro adaptado e voltou a trabalhar. Continua o mesmo: prestativo e extrovertido. Na capoeira (agora a capoeira está em todos os meus textos, rss) também há um aluno (que é também professor, pelo que entendi) que perdeu a perna num acidente de moto e ginga tão bem, que pra perceber a deficiência é preciso reparar, e muito. Eu olho para essas pessoas e não sinto pena. Eu sinto admiração.

Por outro lado, eu conheço pessoas (pelo menos três) que nasceram em berço de ouro (talvez nem tão de ouro assim, mas numa situação financeira confortável) e que, mais de trinta e cinco anos depois, continuam sem saber o que fazer de suas vidas e dependendo financeiramente de seus pais. Em razão de uma superproteção, essas pessoas nunca tiveram a oportunidade de sentir seu próprio poder e sua capacidade de superação.


Quanto a mim, fico entre me superar ( e fico muito feliz quando consigo) e me auto-sabotar. De qualquer maneira, já percebi: meu inimigo sou eu mesma, e não adianta (NÃO ADIANTA) perder meu tempo me comparando com alguém, ou pior, culpando alguém por meus revezes. De novo: "a corrida é longa, e no final, é sempre contra você mesmo" .

Toda essa reflexão surgiu quando eu recebi esse dias, pelo correio, meia dúzia de cartões de Natal dos "Pintores com a boca e os pés". Funciona assim: eles aprendem a pintar, fazem um trabalho de qualidade e comercializam. Essa associação existe desde 1956, e eu a conheço desde 1980, quando vim pra São Paulo e comecei a me corresponder com meus avós de Salvador.
Era sempre um momento de muita alegria receber esses cartões, que eu guardo até hoje. Lembro de minha surpresa, aos seis, sete anos, de ver aquelas obras de arte feitas com a boca e com os pés. "Como é possível ?", eu me perguntava. E me pergunto até hoje.

Esses artistas fizeram parte da minha infância e da minha relação (tão especial) com meus avós, cultivada mesmo à distância; também me provaram que é possível superar as dificuldades e viver a vida com alegria e dignidade, nas circunstâncias mais adversas.

A eles eu dedico esse texto.
(Visite o site: http://www.apbp.com.br/)








































1 comentário:

  1. Carlinhaaaaa!

    Este teu texto, por mais simples que seja, é o melhor dos que você já me mostrou!
    Parabéns, e como andam as coisas?

    Bjs!

    ResponderEliminar